quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Pré-venda do livro "Não alimente o escritor - a escritora"

 


            Vai sair o meu "Não alimente o escritor - a escritora" na coleção Quem dera o sangue fosse só o da menstruação, da editora Hecatombe / Urutau. É um poema que aborda os acontecimentos vividos por mim quando fui detida, durante a realização de uma performance, em Porto Alegre, em 2010. Na ocasião, fui escoltada por dez policiais e duas motos e conduzida em uma viatura até a delegacia, debaixo de um grande tumulto e consternação do público. Vocês podem imaginar que uma experiência como essa não fica quietinha e incólume, nos dentros da gente. E eis que, uma década depois, consigo finalmente chorar (chorar mesmo, de lavar o colo e molhar a blusa) ao revisitar, agora garganta aberta, os ritmos que se guardaram no corpo, e ficaram aqui, reverberando, inauditos, incomodando tanto.

         Publicar esse livro é, também, uma oportunidade de agradecer publicamente a cada uma e cada um que teve, naquele momento, e depois, um gesto. Foram muitos, também, os que compreenderam o que poderia estar por vir, mesmo num ambiente em que a cultura da aniquilação e da bota-na-cara não eram tão visíveis quanto hoje: o fascismo dormia, debaixo das camas. Não pensem que os recentes acontecimentos não influíram na vontade de publicar esse poema-denúncia, cheio de memórias espinhosas. A truculência e todo o ambiente cultural que a alicerça já estavam lá, em semente, naquele episódio.

         Foram dez anos difíceis, para mim, quase impossíveis, apesar de tudo que se seguiu. Tirei energia, não sei nem de onde (do mar? do amor? --- da poesia, principalmente), para me refazer. É claro que, naquela noite, o tempo virou, e nunca mais voltei ao estado anterior. Mas ele vive, em mim. Vivi o mau tempo se armando, com meu corpo dilacerado, impedido, detido, cerceado, depois atormentado por todas as estratégias de difamação e de diminuição de quem eu era e do que fazia. Corri o risco: enfrentei. Paguei o preço. E enfrentar-se com essas estruturas não é fácil. A gente sai ferida, e é de fera machucada esse poema, que deu conta de expressar sentimentos difíceis, procurando também colaborar para a reflexão sobre autoritarismo e violência contra as mulheres.

        Sou é grata, agora, pois encontrei espaço, esses anos todos, no estudo, e na vontade -- fui seguindo, trabalhando, trabalhando, trabalhando: me aprimorei. Estou aqui, feliz por poder dizer, agora, o que precisa ser dito. E que eu digo com sangue, sim. Porque tem coisas que são assim: uma hora elas arrebentam, molham a blusa, explodem e espocam. Num tempo com tão pouco espaço para a lentidão, lanço um livro que é arrebentação de década (e o próximo, também será), na certeza de que o tempo lento é bom de se viver.

         Este é o link da pré-venda: https://benfeitoria.com/n%C3%A3oalimente.


sábado, 12 de dezembro de 2020

add ad infinitum



A adição de infinitos a uma jornada definida pode, às vezes, causar certo enjoo; no entanto, não deixamos de recorrer aos objetos transcendentes, sempre que o presente é pouco.

domingo, 25 de outubro de 2020

 

Como um poste que vomitou escombros, meu corpo de pé na calçada, equilibrando no ar uma fala enviada e recebida, erguida como um não, não um falo, uma fala, visualizada e nunca respondida, aflita como uma saia, andando rápido, agora, agora copiando os passos, pliê, granpliê, degagê, já exausta, justaposta aqui entre os júris, sustentando os joelhos, e o público que grita: ela sim, ele não, ela não, por que sim?, se quiser gostar de mim, sou afim, entre sussurros doloridos, dizimada como uma casa, cuspida em caliça, aflita como uma sala, mãos ao alto, pés no chão, um salto, sempre depois do pliê, passê, degagê, developê, e gira.

domingo, 11 de outubro de 2020


 Detalhe da tela “Casa grande & o Brasil que eu não quero”, 100cm x 100cm, realizado a partir de um conjunto de imagens de livros, especialmente a versão em quadrinhos de Casa grande e senzala.


  

Nos vimos

no meio da pandemia

preparando

peitos em punho

para enfrentar

com porradas

e sustenidos

aquilo

que não se podia pensar.

Nos vimos

no meio da pandemia

e nossos olhos

fervilhavam medo,

e o medo ia até os dedos,

e as nossas vozes vibravam

pelo espaço

como trovões, trovoadas.

No meio da pandemia,

em vertigem,

a verve

dos verbos

se misturando,

se línguas,

alheias aos riscos

da verbalização,

porque as nossas

eram línguas mortas

e antigas

inscritas

no sabor dos ventos

e contaminadas

na memória

desde os cemitérios sambaquis.

A rua

era o perigo de sempre,

perigo de se respirar,

mas agora

se pode pixar

sem contratempo

no meio das madrugadas.

Um baile de máscaras

autômatas

ia e vinha, veloz,

as sombras não nos ouviam,

mantinham distância,

e nós

nos conservamos, também

há séculos

dos outros desses outros.

No entanto,

nos quilômetros

do nosso pixo

propúnhamos o instante.

Nos vimos, assim,

em pleno desespero,

poemas de fogo fácil

em espiral

dispararam

do centro do nada

que agora éramos

sem saber

se se pagam as contas,

se se compram

panos

para costurar as metades

de nós mesmos

com os nós dos outros desses outros,

ajudando com as máscaras.

Caçadores

de borboletas, que éramos,

e de nós mesmos, dos vazios

que vão de um galho a outro,

propondo sentidos

que se despedaçam, só pudemos

propor que tudo passe, e passa,

para podermos

transar com Pã, a sós

dos nós de nós desses nós mesmos

numa espécie de vazio de fábula.


domingo, 20 de setembro de 2020




 

 

Uma mulher

sozinha no apartamento.

 

No frio do carpete sujo

que aquece os pés,

nua. Completamente nua,

sentada,

olhos que se evolam

pelas paredes,

vitrais do quarto.

 

O computador faz ruídos, às vezes.

 

É esquia e magra:

vazia

é tia, avó, irmã, sem nexo.

 

Está nua e só frente às máquinas.

Não há faunos. Florestas foram

concatenadas

no seu pensamento.

 

Em que pensa uma mulher

sem cajados

sem vestido branco

na brancura da pele lisa?

 

Seria mais de meia-noite

e haveria livros pelo chão,

todos abertos:

 

ela abre a página,

mói o livro

joga o livro −

 

e vem sentar-te ao meu lado, Lídia.

 

− Ela vigia o branco

pelos espaços de folhas

entre linhas tão correlacionadas.

 

Ela saboreia relações, depois:

joga.

 

Joga fora,

no chão acarpetado

do apartamento,

joga e ri.

 

E vem sentar-te

à minha frente, Lídia

não sou tão máquina

que não possa causar

no teu ventre

um espasmo cheio de palavras.

 

* primeiro poema do Desconjunto.






 

Um cálice eterno  − eternas férias.


Voos de percevejo

por debaixo dos colchões.

 

Areia movediça

em sons e fúrias do sono

sob os pés que abrasam, no peito,

o vexame de ter dito améns.

 

Etéreo milho

estalando por entre os joelhos

que ainda com os pés me pisam

no sono-verdade dos tempos

 

em tempos, se abrindo e fechando,

matéria noturna das horas.

Pelas paredes, tudo pesa,

 

a malemolência dos minutos

desgasta-se em sons, fulminando figuras

de baratas amarelas entre cartas

nadando

no pó

 

ora líquido

dos passados.

 

E os sentidos, não invento − espreguiço.



*poema do livro Desconjunto, de 2002, revisto em uma manhã de domingo, em 2020.

sábado, 12 de setembro de 2020



eu fiz um colar de estrelas com as cordas do baixo acústico, e ressoavam na sala durante as tardes intermináveis dos meus vinte anos. fiz um vigésimo de segundo, sussurrando estrelas ao som dos meus vácuos, e vi, assim, um sussurro estrangeiro se desfazer nas rusgas do momento em que me vesti, colar, colo, coisa à toda como a presença das estrelas no meu peito, miasmas, minúsculos de momentos distendidos, como a luz nos cadafalsos.

e correntes elétricas estrelaram meus dentros feitos de esquemas e de listas de constelações escondidas dentro das suas calças. como circunstâncias encaçapadas nesses momentos nos quais espocam as luzes de dentro dos seus olhos, como cismas de cachoeiras. a gargantilha das marcas da sua língua no meu desejo constela como coisa à toa nas esquinas que rebrilho entre nós dois. e esses olhos, os seus, que me sugam por dentro, desatinam de estrela sobre os prédios dos quais me jogo para o centro do seu peito que se despede.
seu peito inerte para os meus desejos trama o tempero das quedas.
*
*
*
fiz esse poema, que não pude revisar, em uma noite de sexta (ou seria quinta?), sentada, a sós, no Tralharia, ao som de um jazz, quase verão. e quem diria que as cordas continuariam, agora que o bar fechou, soando como gongos aflitos, no meio dessas madrugadas em que não se pode sentar para escrever em um bar? um dos meus receios, ao me tornar professora, era o de ser flagrada constantemente nessa condição, que era ainda mais frequente quando morava em POA: a de procurar o burburinho das gentes, para me concentrar. eu gosto do ruído rosa que se forma ao som dos risos de um lugar lotado. escrevi meu réquiem para Roberto Piva num lugar assim, mas bem pé-sujo, como deveria ser, dada a minha pobreza. agora brindo ao espírito mundano no meio da quarentena monja: que o poema nos traga, aos tragos de Maiakóvski, um pouco de futuro, de brisa, ou de baixo acústico.








A foto da pintura não é pintura; e a própria pintura vive em mim do poema, apenas. O que o poema declara, a mancha de tinta desdeclara, com um certo cinismo e dor nas costas. Mas o que desdeclara o poema, o que é que dispara nas circunvoluções da mente, o que ele dança, onde faz pausa? Essa pintura, no fundo, é música, composta a partir dos ecos de um trompete reverberando a infância, quando o pai espalhava seus agudos pela vizinhança. E percute os gritos das crianças, cada martelada da perene construção ao lado da casa onde vivo, no final de uma rua meio mal calçada, no Campeche, onde os aviões às vezes passam, às vezes pausam.



 

terça-feira, 1 de setembro de 2020



 

Subimos as escadas
do farol
para ver a paisagem.
Os leões
ficaram lá embaixo,
fazem xixi amarelo.
Ouvimos os seus gritos
soados
na era dos dinossauros.
Sua pele combina
com as pedras
manchadas em alguns pontos
onde os leões
se aninham, nojentos.
Eu, você, sua pele combina
com o rugido dos bichos,
seus cabelos
se enredam
ao pé do vento
onde subimos,
para ver a paisagem.
Você já viu tudo, e senta
no último degrau, me espera
como uma criança
enquanto faço as fotos
que você nunca verá.
Sua face, assim, sentado
combina com o farol, no topo:
você combina o tempo todo
com esse medo de cair
se me alongo mais um pouco
para fazer um close
no leão lá embaixo, um porco
que urra e de repente é você
que solta a gosma da boca
enquanto se move, um vagar,
e se ajusta na outra pedra.
Você e esse leão, tão amigos,
já viram tudo, já fizeram
tudo o que quiseram
comigo,
já mijaram no vento amarelo,
dormiram no ponto
onde o sol se põe
e vocês combinam, sim,
já combinaram
de me ver cair,
o leão marinho
e você,
meu urso,
um urso apenas
de passagem.

C

terça-feira, 31 de março de 2020

eu não sei escrever a máquina
a máquina com a qual escrevo
é meu próprio corpo
escrever é ser sua própria máquina
todo o ser é sua própria máquina
eu não sei maquinar
o sistema judiciário de mim mesma
onde não há provas nem calendário
eu só sei desescrever
meu próprio estado de mim mesma
eu mim mesma má
eu mim mesma máquina
eu mim mesma o eterno calendário
de meses se sucedendo
com dias abertos dias fechados
dias azuis de pés burilados
e dias para balanço
para coleta de sangue e de provas
onde eu mesma me saúdo e me rasuro
como se fosse
uma sala toda branca
o sistema de arte
tem horror à sala branca
eu sou branca
meus lábios
não
eles são vermelhos
meus pés
minha voz
minha boceta
os tornozelos
não são brancos
eu sou
a sala é
o sistema de arte
tem horror
ao que não é
também tenho horror
ao sistema judiciário do
sistema de arte
de mim mesma
mas
pensando bem
sou também
o meu próprio espaço aberto
com redes lançadas ao mar
e alamedas, privilégios
todo espaço
poderia ser sem medo
mas as salas
como as saídas
também se fecham
sobre si mesmas
uma sala
é um espaço com limites
todo suporte é limite
há quem suporte
o seu próprio corpo
sua própria sala
sua própria rede e sede de peixe
mas não faço sala
nem para mim mesma
sou também
minha própria sombra
meu próprio insuportável
meu próprio céu
meu próprio espelho
minha própria não-sala
que se sabe
às vezes
e também tem seus limites
medos meandros
eu sou
minhas próprias paredes
sou
minha própria pele branca
meu próprio refletor
meu próprio calendário
minha própria dor
o sistema de arte
me aprecia
como se saboreasse
minhas portas pernas abertas
o sistema de arte
preza
o preço que se paga
àquilo que se dá
ele não tem
horror à pele branca
ele gosta
de muitos nus
mas teme a pele
e tudo o que cheira e goza
e tudo o que sabe
a sua própria sala
não sou
um espaço confortável
sei a sangue e sede
nos cinco hemisférios

+

poema que abre o livro O sono de Cronos, publicado anteriormente na revista Canguru, e revisado para a versão ebook.

domingo, 29 de março de 2020




























Acordou
coberta de likes,
mas sentia
um frio estranho.
São Longuinho nunca falha,
pensou. Vou achar o
pingente que eu perdi
de uma forma assim tão sonsa,
o meu pingo de luz.
E revirava as ondas, as cobertas,
os lençóis, se movia,
mas o frio aumentava
a cada novo like
que ela mesma se dava
diante de nenhum espelho.
Fez força
para não ser em si
só essa luta
entre o visto e o quisto
e não encontrou o pingente
antes das dez da manhã.
Tomou café
perscrutando perfis.
Escolheu uns cinco,
displicente,
enquanto
organizava a agenda.
Deixou a insatisfação
suave da rotina
tomar conta de si mesma
e, quando viu,
fez match com a vassoura
nos cantos das paredes e
arrastou os móveis
lambendo o chão
como se fosse
uma barba espessa, o dia.
Achou o pingo de luz.
Trabalhou, trabalhou, trabalhou,
foi dormir cheia de likes
se cobriu de um cobertor
a mais na cama e pensou
que no fundo não gostava
daquele pingo de luz,
um pingente tão pequeno
apesar de pura prata,
puro ouro,
outro cristal.




















tiraram as palavras
da minha garganta
sem passar pela boca.
disseram que ninguém
pode comer imagens.
para eles
é tudo norma
e haviam escrito
em um muro inexistente
que não se deve
degustar com os dentes,
porque a saliva contamina
o que flui nos sons da fala.
me fizeram despencar
desde o glúteo até o monturo.
fiquei amarrada enquanto
pinçavam, de dentro do peito,
um jeito vermelho vivo.
naquilo que reluz, atmosferas.
daí fiquei com o corpo inchado.
estranho,
pois era justo o dom do muco
que me mantinha leve. o cuspe
pegajoso
tem Hélios por dentro, Jimis Hendrix,
Oiticicas, daimons e daimons
e daimons
que tocam flautas
por dentro. e Sócrates
nenhum.
depois de ultrajada, assim, só via o instante,
a carcaça jogada, um boey de Rembrandt:
aquele aberto, não dissecado, salgado:
aquele colapso das coisas que podem
fazer sentido.
brilha, por dentro, o corpo. por fora
é pós e paetês. tem veias
como cachoeiras.
e sempre foi assim, parangolés,
luz se desplazando
desesperadamente
à procura do que não. e do que corpo.
essas imagens
eu mastigo
como vaca, na paciência
das deglutições.
a proibição
faz parte do precipício
ao qual me jogo
com vontade,
não sem antes me sentar
assim, sobre uma pedra,
comendo as imagens que o mar
vai vertendo
dentro da boca. e deixando
que elas formem calda.
por enquanto,
um vento bate e é bom.
depois
elas se fazem tantas
e tão zanzas, as imagens,
que dá até gosto
vê-las dançar.
as pedras onde me sento
ultrapassam tambor.
é por isso que me arrancam, de mim,
com violência.
aqui, no vento, é muito fácil, parece.
eles retiram as palavras
uma a uma. depois
eu pego a pedra
que me deram
e subo a colina. dói para aprender,
mas
depois do precipício
fica tudo meio ímpeto.
meu corpo aqui, de cócoras
diz o que é: que é rosas, que é frestas
e é poças e águas mansas e
que é corte, às vezes.
coisa.
e na hora em que a gente
menos imagina, arrebenta a onda.



Poema do livro Squirt, editora Terra Redonda, 2019.































VINHO E HEMATOMAS
– E UM POUCO DE LED ZEPPELIN

onde as costas não podem se encostar

onde as coxas mal conseguem
subir umas escadas
sem ranger
por dentro
o sangue que circula
e forma essa pequena nuvem

primeiro azul esmaecido e depois
da cor do vinho
e dos seus lábios

nuvem dolorida
da lembrança
de uma queda que passou
como passou por essas coxas o seu
sangue e a sua saliva

nuvem de carne ardida
que se cospe nas esquinas
caindo de bicicleta
mascada aqui e acolá
uma espécie de vento
que esmaece em chuvas
a libido

a queda esse tipo de grito
que se grita só
pelas madrugadas
sem que haja
agentes ou arnicas
a aliviar
do tombo irrevogável
de todos os dias

quanta bobagem
se dizem os namorados
pensa Clarissa
a personagem

e me digo
o mesmo enquanto você
perambula pelo meu desejo
com seus lábio e língua
ainda intocados
mas perfeitos
como nessas fotos

você se lembra de uma glória
entre lençóis e suga
todos os meus lados
enquanto os hematomas

nuvens fuzis

fervem
por debaixo dos meus dicionários

há o rosário das horas
que orei sozinha
enquanto você
fingia não saber
o fim daquele orgasmo
e que há cabelo em ovo
para ser curado
com os números de Grabovoi

assim como o aro torto
e o pedal quebrado

você me avisou

vou não vá não vá disse
em uma alameda
ladeada de árvores

ali naquele lodo
você pode cair
assim
depois do orgasmo
cansada na chuva
às três da manhã
com a sua bicicleta

quando o sol urge
de desejos de nascer
na sua própria cama
ao som de Led Zeppelin
o seu blues
eu rio muito
do seu parlamento inglês
sendo Clarissa
a personagem
nessa jogada das pretas
que irão ganhar o lance

essa é a dama
baby
é o domus
a danação do instante no qual
você não consegue me sugar
e devolve
o clitóris entumecido
diante dos sinais de trânsito

para dizer adeus aos carros
e para sussurrar em cima
que não quer, não aguento mais,
mas não posso frear aqui,
pois parece
que você já me matou


***

Poema do livro Squirt (Terra Redonda, 2019)


































A ninfa,
aquela que carrega as frutas
dentro da pintura.

A ninfa,
a nenúfar
de nenhum gosto
- a puro movimento -

aquela que põe ar
dentro das manhãs.

Ela veio assim
em um palácio, em Firenze
- as estátuas
com os dedos quebrados
não indicam.

Ela veio assim, em Roma
- as estátuas
de cabeças quebradas
não acenam.

Ela veio assim, em Brasília
- os passos voados
dos carros dos carros dos carros
não indicam. Porque

nada voa como no seu corpo

- o dela, que se sopra desde dentro
e flutua no momento
de braços abraçados em si mesma.

A ninfa. Não esta
- a do brasil importado
que nem ferve nem nunca
se olhou no espelho
enquanto queima
cada cor e cada tela.

Não. A outra, a de um
país por inventar, pois
sempre é outra e outra ninfa.
E é por isso que os ventos
dormem e acordam nela.

Sua presença mansa
se enfurece a cada
pequeno intervalo
na jornada
de falares e ouvires
sempre tão afetados
por nenhuma ninfa.



Poema do livro O sono de Cronos (Terra Redonda, 2019)




finalmente brigam, se discordam, finalmente destoam suas cordas de baixo acústico por toda a zoeira da sala. são tão mente-e-corpo que é difícil separá-los dessa marra, desse ranço, dessa destinação na qual a poeira e as plumas formam a nuvem-gelo. a nuvem gelo-seco do combate entre a dor e umas acácias, que, no meio do caminho, perturbam o olhar do homem-máquina, do homem sem orelha. enquanto as saudades roxa e branca perturbam o olfato dessa dona sem retina. são aglomeros, são gonzos circundantes, pequenos objetos arremessados na memória: o bilhete, a moedinha favorita, a máscara para respirar e as anotações. finalmente param, desligam-se, ficam lúgubres e lugares: são agora estátua renascida do oceano, alga e musgo sobre as faces.



*
poema do livro Squirt




É o meu mar que você cheira, desavergonhado, enquanto massageia as pernas com óleo,  fingindo que não vai mais mergulhar a ponta da sua língua no meu segredo. E adia o seu deserto, carregando o peito aberto e bom debaixo do sol forte. E de repente você cruzou oásis e agora penumbra com sua língua essa noite azulada do meu dentro. Afasta com as mãos serenas as superfícies pelas quais passou, para se refrescar, translúcido, e sua com seu sol salgado sob os meus tremores, e pergunta se estou bem, mas não sei responder a esse estado assim absorto nas miragens. Vejo que é um sol, o seu, de irradiações lilases que se alastram pelas minhas extremidades, e também se proliferam de manhã, no meu peito agora dissolvido e bom debaixo do seu sol. O dia nasce e você passeia as pontas dos seus dedos na minha face, suado e satisfeito por ter conseguido me salvar do seu naufrágio.



















Sei que Plotino me espera
para um encontro extraconjugal.
Plotino parado, à mão,
na mesa de cabeceira.
Traição sem ancoradouro
nem hora pra acabar
à vista do nascedouro.
Plotino é brasa, é um buraco
à guisa de fundição, fervendo
como o cobre que depois
se torna estátua.
Ele estronda
em gonzos interiores.
É de ferro, de trilho, de alça
e espada, Plotino de farda
é, sim, prata da casa:
confortável, capa verde,
varado a dedicatórias,
furtado numa feira, como
crime amaro
e amuleto.
Plotino é
todos os tesouros
(quase como Platão):
alívio das malcasadas,
cassado e posto de lado
no lodo do alto do trovão
e trovador
de porta de boteco,
rei do lero-lero,
lilás,
feminídeo e feminazi,
femeeiro, tão fodão,
Plotino à porta de todos os precipícios.
Plotino é lua de prata, patrão,
fuga e sonata para a minha boceta
- homem casado, safado,
comido a mordidas
no marco das reminiscências:
uno e vazio
como todos os cem mil.
Plotino aflito, roubando carros,
coçando o saco,
comendo restos.
Plotino é papo reto só depois das baforadas.
Tomador de porradas,
herói bastardo,
chacinado em Xingu,
filho de Xangô, estuprado,
Plotino de pele sem pelo
ou então atropelo, curado
pelos curas mais viados,
martirizado, milico,
cheio de atrito, atordoado,
Plotino um palhaço e
um puto, porco,
pedaço de nada
que nem se lê:
namorado.

Lugares ogros





















Lugares ogros é um romance experimental, publicado pela Caiaponte em 2019, através de um financiamento coletivo que oportunizou a criação da editora, por Marcelo Labes.

https://caiaponte.wordpress.com/catalogo/lugares-ogros-de-telma-scherer/




PRÓLOGO

Tenho um plano para hoje. Incluí você, mas não se preocupe. Quero que relaxe, e possa esquecer o seu tédio, o apartamento pequeno e cheio de ruídos, as dores comezinhas que sempre importunam as leituras, mas que hoje talvez. E talvez é suficiente. Quero que você conheça certas esquinas, só nós dois, muito antes de surgir a mulher de vermelho. É pra isso que estou aqui. E, não sei se você faz ideia, mas foi um trabalho intenso até chegar a este ponto. Logo me apresentarei melhor, número de identidade, endereço e CPF, porém não tenha dúvidas de que sou uma personagem sã, sim, mulher honesta, bem criada e tudo mais. Não, não tenha medo, são apenas nossos passos. Iremos rápido, temos tantas páginas, e ainda assim logo tudo estará acabado, Jorge e eu e ela, e meu velho, e minha amiga, ainda nem começou.
     Você não pode argumentar que desconhece, não foi avisado, ninguém lhe convidou. Veja, este segundo parágrafo é desconhecido? Diga-me se está ignoto em alguma parte do prédio cinza a que chamam lar ou cérebro. Você já leu o primeiro, e não foi rápido, agora que passou? Nós subiremos juntos, e não precisamos nem mesmo de manuais ou de instruções sobre como subir uma escada. São poucos degraus, agora. A princípio só três, na descida; depois outros, na subida, mas venha.
     Você não precisa conhecer de cor Todos os Mestres da Literatura. Talvez nem tenha que abrir o dicionário, e “talvez” basta. Nada de outrossins e de destartes, que eu descarto. Jorge é quem tem essa mania de corrigir e corrigir, desde quando nos cruzamos no corredor da faculdade, era tão frio, meus All Stars molhados para passar a tarde inteira até a noite. Eu chegaria em casa cedo, era uma sexta, e Jorge reclamando da minha linguagem. Molhei-me, me molhei no corredor antes mesmo de entrar em aula, mas não faz mal, ou faz? E não haverá inconvenientes entre nós dois. Até porque, agora, há greve. Até porque estou aqui dentro, nas suas mãos. E ainda assim, talvez eu me apaixone por você. Você pode até fechar-me agora, mas prometo que a mulher de vermelho não atrapalhará, e Roberto já sabe de tudo e os trilhos estão desativados. Nossa relação será leve, sem ciúmes, nem cobranças. Eu também não gosto que me vigiem e não gosto que me peguem no braço.
     Sim, vestida e desvestida, ponto de ônibus, uma cena precisamente às 5:15 da manhã, adolescentes, tesouras, passeatas, uma noite de sexo, a luz do sol no mar e até vinho, se você gosta de vinho, ou água, e cassetetes, tudo isso eu prevejo ou pressinto mas, por enquanto, ando.
     Sinto o peso da mochila. Toda a minha propriedade cabe aqui. Abri os armários do JK[1], era um sábado de sol, fui encaixotando as coisas com minúcia. Quatro caixas bem fechadas, depositei-as no armário aéreo, lá em cima. As louças, panelas, cobertores, nem encaixotei: serão úteis ao Roberto. Ele vai ficar morando lá.
     Mas isso será no futuro e estou apenas começando a relatar esse fato do meu passado, aquela manhã. Tive que avisar as pessoas, claro. Roberto era o único. Internet é uma coisa muito boa quando você realmente quer acionar o botão “todos os contatos”. Avisei, disso ninguém pode me culpar. Estarão? Eles não sabiam nem da gravidez nem sequer que eu andava com sprays na bolsa. Acho que não vão se importar com a saída, até porque eu não tinha promessas. Logo estarei de volta. Tudo o que ficou daquele apartamento luminoso, arranha-céu, barulho de motores, tudo, tudo, tudo o que possuo ficou dentro da mochila. O resto, doei sem culpa. Uma coisa que sempre esteve certa, pra mim, não sei se já ocorreu a você é até meio chavão, lá vai: tudo o que a gente tem, de alguma maneira, oprime. Porque quando a gente tem um carro tem que achar vaga pra estacionar; se tem um livro, pode até ser um pocket, a gente tem que achar lugar onde guardá-lo. Com um presente, por exemplo, um brinde, que seja, no mínimo há que se tomar uma atitude: tomar para si ou jogar fora. O fastio ou a coragem de fazer um movimento, a decisão, nem que ela seja um rápido largar no primeiro lixo da rua. Sim, é isso o que vou fazer agora com o envelope. Até porque Jorge nunca me fez de trouxa e você, foi você, sim, que me levou a essa ótima ideia. Vejo-o sumir dentro da boca preta e suja, dobrado e pardo, com meu nome escrito a lápis, com o cheiro dele.


[1]     Nota do Editor: nome pelo qual é conhecido um pequeno apartamento sem cômodos nem paredes entre cozinha, sala e quarto, com separação apenas do banheiro.